Os benefícios da alimentação vegetariana para a saúde, nomeadamente associados a menores incidências de DCNTs, como obesidade, doença arterial coronária, hipertensão, diabetes tipo 2 e cancro, conforme observado na literatura,1,2 devem-se principalmente ao facto de se tratar de um padrão alimentar potencialmente rico em alimentos na sua forma não-processada ou minimamente processada, como as leguminosas, hortícolas, frutas, cereais integrais, frutos oleaginosos e sementes,3-5 sendo estes ricos em fibras, vitaminas e minerais, fitoquímicos, como os polifenóis e gorduras insaturadas, além de pobres em gorduras saturadas e trans, sódio e açúcares livres.6
Por outro lado, o simples facto de um produto não conter ingredientes de origem animal e ser apto para veganos, não significa que é necessariamente saudável.4,7 Em geral, o consumo de alimentos nutricionalmente mais pobres e com alteração significativa da matriz alimentar – os chamados alimentos “ultraprocessados” -, tanto de origem animal quanto vegetal, está associado a um maior risco de excesso de peso, obesidade abdominal, obesidade, síndrome metabólica, doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2, cancro, síndrome do intestino irritável e mortalidade total.8-10 Embora ainda não esteja totalmente esclarecido quais os mecanismos que levam às associações observadas, as principais hipóteses baseiam-se na transformação da matriz alimentar, que pode reduzir a quantidade de fibras, fitoquímicos, vitaminas e minerais, na adição de aditivos alimentares, que pode oferecer riscos ainda desconhecidos ou na adição de ingredientes, que pode aumentar a quantidade de gorduras saturada e trans, sódio e de açúcares livres, resultando em alimentos com alta densidade energética, baixo valor nutricional, elevado índice glicémico, baixo potencial de saciedade e hiperpalatáveis, ou seja, que apresentam elevada facilidade e velocidade de ingestão.9
No entanto, é importante entender que o processamento alimentar é essencial para aumentar o prazo de validade, garantir a segurança alimentar e a qualidade nutricional, atender às necessidades nutricionais específicas e adicionar variedade e conveniência à rotina alimentar.11 Adicionalmente, mesmo as formas de preparação alimentar caseiras são formas de processamento e praticamente todos os alimentos passam por algum tipo de processo até chegar às nossas mesas.
Mas afinal o que é um alimento minimamente processado, processado ou ultraprocessado?
Esta é uma questão complexa e ainda controversa. Existem várias definições e sistemas para categorizar os alimentos pelo nível de processamento,11-14 sendo o NOVA o mais utilizado na literatura científica.15 O NOVA é um sistema de classificação holístico que categoriza os alimentos em 4 grupos (1) alimentos não-processados ou minimamente processados; (2) ingredientes culinários processados; (3) alimentos/produtos processados e alimentos/produtos ultraprocessados.15,16
No entanto, o sistema NOVA é alvo de muitas críticas. Alguns autores consideram-no demasiado simplista, impreciso e controverso, por considerar apenas o nível de processamento, os ingredientes e os aditivos adicionados, desconsiderando outros fatores importantes relativos aos alimentos, como a composição nutricional, os processos tecnológicos envolvidos na produção e os possíveis benefícios do processamento.11-13;18-22
Alguns produtos, como as alternativas vegetais à carne à base de proteína de soja (p. ex.: hambúrgueres) e as bebidas de soja sem adição de açúcar e fortificadas com cálcio e vitaminas, apresentam composição nutricional semelhante, ou até superior, aos seus homólogos de origem animal (p.ex.: carne vermelha e leite de vaca). No entanto, os primeiros, de origem vegetal, são classificados como ultraprocessados pelo sistema NOVA, enquanto os segundos, de origem animal, são classificados como minimamente processados. Neste caso, a classificação de ultraprocessados, independente do valor nutricional, pode criar um estigma de “não-saudáveis”, podendo diminuir sua aceitação entre os consumidores que procuram fazer escolhas mais sustentáveis e que considerem o bem-estar animal. Numa perspetiva macro, pode ser contraproducente para alcançar os objetivos de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS), bem como os de outras autoridades e organizações de saúde,22 que têm vindo a recomendar a redução do consumo de carnes vermelhas e processadas, pela sua associação com o aumento do risco de cancro colorretal, diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares.23-25
A fim de tornar o NOVA mais específico, foi criado o sistema SIGA, com um conceito não apenas holístico e qualitativo, mas também reducionista e quantitativo. Ou seja, o sistema SIGA também considera o efeito do processamento na matriz alimentar, mas igualmente a composição nutricional dos alimentos processados.20 Na prática, novos subgrupos foram criados, dentro dos grupos do sistema NOVA, possibilitando, por exemplo, categorizar produtos como “nutricionalmente equilibrados” dentro das categorias “processados” e “ultraprocessados”, pois mesmo tendo a matriz alimentar alterada pelo processamento, apresentam boa composição nutricional.20
O processamento em si não é o problema!
Alimentos processados que podem fazer parte de uma alimentação vegetariana saudável
Considerando que o consumo de alimentos processados parece estar a aumentar e já contribui significativamente para o valor energético de quem segue uma alimentação vegetariana (especialmente entre os mais jovens), é de suma importância perceber quais as melhores opções disponíveis no mercado.26
Muitos alimentos classificados como processados, e até ultraprocessados, pelo sistema NOVA, devido ao enriquecimento, fortificação e aumento da biodisponibilidade e da concentração de nutrientes, podem contribuir para tornar qualquer padrão alimentar, inclusive vegetariano, mais prático e nutricionalmente equilibrado.5;12;21,22;27,28 Alguns destes produtos, além de poderem apresentar boa composição nutricional, contribuindo para atingir as necessidades de ingestão de nutrientes-chave numa alimentação vegetariana, não possuem necessariamente as características dos alimentos que estão na categoria dos ultraprocessados e parecem estar associados às DCNTs, como hiperpalatabilidade, elevada densidade energética, alto índice glicémico e baixo potencial de saciedade.22;29-32
Alguns exemplos:
Tofu
- O tofu é produzido a partir da coagulação da bebida de soja, seguido de prensagem. Os principais coagulantes utilizados são: cloreto de magnésio (Nigari) e/ou sulfato de cálcio.33,34 Pode ser encontrado ao natural, na forma de tofu sedoso ou firme, fumado ou temperado (com adição de óleo e especiarias).
- É uma excelente fonte proteica, tendo habitualmente:
- Em média, 14,6g de proteína por 100g, dentre os tofus firmes em estado natural mais comuns no mercado português;
- Em média, 19,4g de proteína por 100g, no caso dos tofus fumados;
- Qualidade: ótimo perfil de aminoácidos e elevada digestibilidade.35
- 19% dos tofus ao natural, dentre os mais comuns no mercado português, são “fortificados” com cálcio (~210mg/100g; 21% das necessidades diárias de um adulto), fontes de outros minerais, como ferro, zinco e magnésio, e fontes de gorduras poli-insaturadas e de isoflavonas.33,36
Sugestões para ter em consideração no momento de compra: Ao escolher tofus temperados, avaliar a quantidade de sal (poderás usar este descodificador de rótulos)
Tempeh
- O tempeh é produzido a partir do remolho, cozimento e posterior fermentação de grãos de soja (ou de outras leguminosas e/ou cereais) pelo fungo Rhizopius oligosporus.37
- É uma excelente fonte proteica, com uma quantidade média de 17,4g de proteína por 100g, dentre as marcas mais comuns no mercado português.
- É fonte de fibras, minerais como ferro, zinco, potássio e magnésio e vitamina B2, e de gorduras poli-insaturadas.38
Seitan
- O seitan é basicamente composto por glúten, a principal proteína do trigo. Pode ser produzido a partir da farinha de trigo ou diretamente do próprio glúten.
- É uma boa fonte proteica com uma quantidade média de 22,6g de proteína por 100g, dentre as marcas mais comuns no mercado português, sendo uma fonte de proteína de elevada digestibilidade.35
Soja texturizada
- A soja texturizada é obtida pelo processo de extrusão da farinha de soja desengordurada, um processo termomecânico que embora altere a matriz alimentar, mantém a sua boa composição nutricional e não envolve a adição de açúcares ou sal.39-41
- É uma excelente fonte proteica, com uma quantidade média de 20,0g de proteína por 40g (peso seco), dentre as marcas mais comuns no mercado português, sendo uma fonte de proteína de ótimo perfil de aminoácidos e elevada digestibilidade.42,43
- É fonte de minerais, como ferro, zinco, cálcio, potássio, magnésio e vitaminas do complexo B e folato, fibras e isoflavonas.33;44
Pão de forma integral de pacote
- Algumas opções podem fornecer boas quantidades de proteína, fibras, vitaminas do complexo B e minerais, como ferro, zinco, cálcio e selénio. Os aditivos que permitem o maior tempo de vida e manutenção das características do produto são regulados, e utilizados em quantidades seguras (segundo o Regulamento (CE) N.º 1333/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho).
Sugestões para ter em consideração no momento de compra: Verificar se as primeiras farinhas na lista de ingredientes são provenientes de cereais integrais, como a farinha de trigo integral (T150) ou a farinha de centeio (T70). Na declaração nutricional, avaliar a quantidade de fibra (idealmente mais de 6g por 100g) e, de açúcar, recorrendo ao descodificador de rótulos.
Bebidas e iogurtes de soja
- A bebida de soja é produzida a partir da demolha, descasque, moagem e cozimento do grão de soja, seguido pela filtragem. O iogurte de soja é feito pela fermentação bacteriana da bebida de soja.45
- Ótimas fontes proteicas, em teor: 40% do valor energético (34% para os iogurtes), dentro das marcas mais comuns no mercado português; sendo fontes de proteína com ótimo perfil de aminoácidos e elevada digestibilidade.35
- 79% das bebidas de soja ao natural, dentro das mais comuns no mercado português, são fortificadas com cálcio (~120mg/100ml; 12% das necessidades diárias de um adulto), sendo que cerca de 50% são também fortificadas com vitaminas B12, B2 e/ou D2.
Sugestões para ter em consideração no momento de compra: Escolher as opções que são fortificadas com cálcio (e, se possível, também com vitaminas B2, B12 e D2) e que não têm açúcares adicionados (ou baixa quantidade, no caso dos iogurtes, aconselhando-se o recurso a este decodificador de rótulos).
Bebida de soja | |
Opção menos interessante | Melhor opção |
Ingredientes: água, 14,5% feijões-de-soja | Ingredientes: Base de SOJA (água, grãos de SOJA descascados (8,7%)), reguladores de acidez (fosfatos de potássio), carbonato de cálcio, aromas, sal marinho, estabilizador (goma gelana), vitaminas (B2, B12, D2) |
Iogurte de soja | |
Opção menos interessante | Melhor opção |
Ingredientes: Preparado de SOJA (99%) [água, grãos de SOJA (8,5%)], amido modificado, sal, fermentos selecionados | Ingredientes: água, grãos de SOJA descascados (10,8%), citrato tricálcico, estabilizador (pectinas), reguladores de acidez (citratos de sódio, ácido cítrico), aroma natural, sal marinho, antioxidantes (extrato rico em tocoferóis, ésteres de ácidos gordos do ácido ascórbico), vitaminas (B12, D2), fermentos vivos de iogurte (S. thermophilus, L. bulgaricus). |
Cereais de pequeno-almoço
- Algumas opções podem fornecer boas quantidades de fibras, vitaminas do complexo B e minerais como o ferro. Os aditivos que permitem o maior tempo de vida e manutenção das características do do produto são regulados e utilizados em quantidades seguras (segundo o Regulamento (CE) N.º 1333/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho).
Sugestões a ter em consideração no momento de compra: Na declaração nutricional, avaliar a quantidade de fibra (idealmente mais de 6g por 100g) e de açúcar, recorrendo ao descodificador de rótulos.
Análogos à carne
- Os análogos à carne são produzidos com o objetivo de mimetizar os aspectos sensoriais da carne (aparência, cor, aroma, textura e sabor) e, em alguns casos, os aspectos nutricionais. São normalmente compostos por proteínas isoladas ou concentradas de soja, ervilha e/ou trigo (glúten), óleos vegetais, aditivos alimentares e especiarias.46,47
- Algumas opções podem fornecer boas quantidades de proteína e de fibras. Os aditivos que permitem o maior tempo de vida e manutenção das características do produto são regulados, e utilizados em quantidades seguras (segundo o Regulamento (CE) N.º 1333/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho).
- Em geral, as alternativas vegetais à carne de frango (p.ex: em tiras ou pedaços) têm melhor composição nutricional que as alternativas vegetais às carnes vermelhas (p.ex: que procuram replicar carne picada, almôndegas e hambúrgueres), aos panados e aos enchidos.
Sugestões para ter em consideração no momento de compra: Assim como os restantes produtos processados, há opções com boa e má composição nutricional, dentro dos produtos de base vegetal análogos à carne. Por isso, é importante avaliar a quantidade de gordura saturada, sal e açúcares adicionados, recorrendo ao descodificador de rótulos e optar pelas opções que têm valores de proteína iguais ou superiores à 14g por 100g.
Análogos à carne | |
Opção menos interessante | Melhor opção |
Ingredientes: Água, óleos vegetais (girassol, coco), glúten de TRIGO, amido de TRIGO, farinha de TRIGO, proteínas de SOJA, amido de batata, corante: caramelo simples, espessantes: metilcelulose, amido, aromas naturais, sal, especiarias e ervas aromáticas, fibra de TRIGO, açúcar de cana não refinado, extrato de especiarias, aromas de fumo, beterraba, maltodextrina, caramelo em pó. Por 100g: 226 kcal | 5,2g gordura saturada | 1,4g fibra | 13g de proteína | 1,7g sal | Ingredientes: água, concentrado de proteína de soja 27,3%, azeite 2,5%, sal, aromas, especiarias 2% e vitamina B12 Por 100g: 126 kcal | 0,5g gordura saturada | 5,8g fibra | 18g de proteína | 1,8g sal |
Outros produtos que podem ajudar a atingir as necessidades diárias de nutrientes e a facilitar a adesão a uma alimentação vegetariana saudável, que são classificados como minimamente processados, processados ou ultraprocessados e que podem gerar algumas dúvidas nos consumidores, são:
- Sopas e saladas prontas. São formas práticas de garantir o consumo de importantes grupos alimentares no dia-a-dia.
- Leguminosas e hortícolas congelados. São formas práticas de garantir o consumo destes dois importantes grupos alimentares no dia-a-dia, além do estado congelado garantir maior durabilidade. A perda de nutrientes com a congelação é irrisória, não há diferenças significativas entre a quantidade de vitamina C, beta-carotenos e folato em hortofrutícolas frescos e congelados.48
- Leguminosas em conserva, enlatadas ou em frascos de vidro. São formas práticas de garantir o consumo deste importante grupo alimentar no dia-a-dia. Dica: escorrer a água do frasco e passar as leguminosas por água pode reduzir o teor de sódio em 40%.49
- Proteínas isoladas em pó. São uma opção prática de aumentar a ingestão proteica, quando necessário.
Já os alimentos, classificados como ultraprocessados e nutricionalmente mais pobres, mas que trazem algum conforto ou memória afetiva, como um pastel de nata vegano, aquela fatia de bolo da avó acompanhada de um café, o novo croissant vegano da padaria da esquina ou até algum dos novos gelados veganos que têm aparecido nos supermercados, também podem fazer parte da alimentação integralmente vegetariana, desde que sejam consumidos de forma esporádica, isto é, que sejam a exceção e não a regra. Afinal, comer vai muito além dos nutrientes.
Como escolher um alimento processado?
É importante que os consumidores saibam ler rótulos e interpretar tabelas nutricionais para tomar as melhores decisões quando estiverem a escolher um produto alimentar, no supermercado ou noutro estabelecimento similar. Existem vários sistemas de rotulagem nutricional simplificada, que podem facilitar a escolha por um produto mais saudável.50
Em Portugal, não existe um único modelo, embora o Nutri-Score esteja a conquistar popularidade. Mesmo que ainda apresentem limitações e possibilidades de melhorias, os sistemas de rotulagem nutricional simplificada são uma ferramenta útil para os consumidores.51
Outra ferramenta importante, que pode ajudar neste processo, é o Descodificador de rótulos, sugerido pelo Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS).
Conclusão
A base da alimentação vegetariana deve ser composta por alimentos classificados como não-processados ou minimamente processados, como as leguminosas, cereais integrais e tubérculos, hortícolas, frutas, frutos oleaginosos e sementes, se possível frescos e da época.
Alimentos classificados como processados ou ultraprocessados, mas com boa composição nutricional, podem fazer parte de uma alimentação vegetariana saudável, tornando-a mais prática e contribuindo para que sejam atingidas as recomendações diárias de alguns nutrientes, facilitando assim a transição e a adesão a este padrão alimentar.5;11;22
Portanto, no que toca aos alimentos processados, é uma questão de dose e frequência de consumo, destacando-se a importância de saber utilizar as ferramentas disponíveis para fazer escolhas com bom valor nutricional.
Artigo da autoria de Lucas Oliveira, com revisão de Márcia Gonçalves (3726N).
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Notas adicionais: Neste artigo, alimentação vegetariana refere-se à alimentação vegetariana estrita, composta exclusivamente por alimentos de origem vegetal.