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O consumo (excessivo) de peixe em Portugal – Um debate urgente

O consumo de peixe, em Portugal, levanta sérias preocupações em termos de sustentabilidade e bem-estar animal, impulsionando um debate urgente sobre as implicações para o meio ambiente e para as próprias espécies marinhas. Neste artigo, vamos explorar dados inquietantes e analisar os impactos ambientais e éticos do crescente consumo de peixe em Portugal.
O consumo (excessivo) de peixe em Portugal – Um debate urgente

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Num artigo recente publicado pela Associação Vegetariana Portuguesa (AVP), demos-te conta de que a balança alimentar portuguesa é tudo menos sustentável. Com efeito, no relatório do Instituto Nacional de Estatística (INE) publicado em 2021, para o quinquénio 2016-2020, pode verificar-se a existência de um considerável desvio, em face do recomendável pela Roda dos alimentos, no que diz respeito ao consumo do grupo “Carne, pescado e ovos”.

Conforme se pode ler no relatório mencionado, “cada residente em Portugal tinha, em média, disponível para consumo 229,8 g/hab./dia de carne (83,9 kg/hab./ano). Comparativamente ao período 2012-2015, as disponibilidades médias aumentaram 8,7% (+6,7 kg/hab.)” (p. 17).

No que ao pescado em particular concerne, de acordo com o mesmo relatório e para o mesmo período, a sua oferta para consumo aumentou 16,3%, tendo alcançado o valor de 62,7 g/hab./dia. 

O consumo de peixe em Portugal é, na verdade, um dos mais elevados na União Europeia (UE). Um outro relatório, o da European Market Observatory for Fisheries and Aquaculture Products (EUMOFA), revelava que, em 2019, Portugal era o país que mais peixe consumia, mantendo-se a tendência para ficar nos primeiros lugares nos anos seguintes. 

close up photo fish life underwater oceanarium

Segundo este último relatório, o consumo de produtos frescos da pesca e da aquicultura tem vindo a aumentar desde 2018 e, em 2020, terá atingido as 80 251 toneladas. Em 2020, cada pessoa terá consumido, em média, 59,9 Kg de peixe; 2,5 vezes mais do que a média registada na UE.

Foi no consumo da dourada – que representava 14% do total do consumo português em 2020 – que se registou um aumento acentuado. De 2019 para 2020, o seu volume aumentou 28%, passando de 8 539 toneladas para as 10 949 toneladas.

Esta informação pode ser ratificada pelos dados recentemente publicados nas Estatísticas de Pesca – 2022 do INE. De acordo com este organismo, “em 2022 foram capturadas pela frota portuguesa 165 801 toneladas de pescado”, tendo-se observado, ainda, um aumento de 5,3% (em comparação com 2020) na produção aquícola total em 2021 – um aumento que perfaz um total de 17 900 toneladas.

Relembre-se que estes números dizem respeito apenas ao consumo de pescado em Portugal. No Reino Unido, por exemplo, estima-se que sejam cerca de 77 milhões, os peixes criados e mortos todos os anos.

Como alerta Peter Singer, por muito difícil que seja conceber, ao nível mundial, aquele número pode subir para os 124 mil milhões de peixes.

O número total de peixes que sofre devido à aquicultura intensiva é ainda maior. Estima-se que entre 460 mil milhões e 1,1 biliões de peixes sejam retirados dos oceanos todos os anos, transformados em farinha de peixe e dados como alimento a peixes carnívoros. Um típico salmão de viveiro come 147 peixes antes de ser morto”. 

Peter Singer, filósofo e bioético australiano
front view cook cleaning fish kitchen

O consumo de peixe e perda de biodiversidade

O aumento de procura e consumo de pescado, juntamente com práticas de pesca insustentáveis e a par das alterações climáticas, estão a resultar, segundo a IUCN (International Union for Conservation of Nature – União Internacional para a conservação da natureza), no aumento da acidificação dos oceanos

Devido ao aumento crescente dos níveis de dióxido de carbono (CO2), nos últimos 200 anos, os oceanos terão absorvido cerca de 30% do total das emissões de CO2. O que acontece é que, quando a água do mar absorve CO2, ocorre uma reação química que leva à formação de ácido carbónico (H2CO3), tornando-a mais ácida. É como se o mar se transformasse num copo gigante de água com gás.

Os impactos desta acidificação para os oceanos são enormes. As alterações da fisiologia, do comportamento e da taxa de crescimento dos organismos marinhos, assim como variações na dinâmica das suas populações são algumas das consequências que, de acordo com a IUCN, são profundamente graves e de grande amplitude para a biodiversidade marinha.

Torna-se, por isso, cada vez mais evidente o enfraquecimento crescente dos ecossistemas marinhos, aumentando ainda mais a vulnerabilidade de algumas espécies marinhas, em particular das que têm um esqueleto ou concha, como os corais, os crustáceos e os moluscos.

Os oceanos mais ácidos também estão a afetar as espécies de peixes e plâncton que estão na base da cadeia alimentar marinha. E se estas sofrerem ou se perderem, todo o ecossistema marinho é afetado.

Ainda segundo a IUCN, citada pela Quercus, entre as espécies mais afectadas estão o caranguejo, as lagostas, as amêijoas, os mexilhões, as ostras, os ouriços-do-mar, os corais e as lulas. O que representa uma ameaça significativa ao delicado equilíbrio de nossos oceanos e à abundância de vida marinha. Podes consultar a lista das espécies ameaçadas incluídas na lista vermelha da IUCN.

frozen fish with snow around

Bem-estar Animal

Até ao momento, abordámos a questão do consumo do peixe numa perspetiva antropocêntrica, como são, aliás, as generalidades das abordagens. No entanto, é fundamental tentar compreender e aceitar que os peixes também são seres sencientes, como o atestam um número crescente de estudos e que eles sofrem e muito!

Simultaneamente, aumentam, também, os indícios de que os peixes conseguem sentir dor e não há qualquer justificação para ignorar essa dor. Como lembra Peter Singer, “os peixes são capazes de sentir dor, prazer e outras emoções ao longo da sua vida. Apesar disso, os peixes recebem muito pouca proteção legal e são criados em condições terríveis ou capturados com métodos extremamente cruéis”.

Na verdade, como já aqui chamámos a atenção, ainda que países, como os que fazem parte da UE, tenham legislação quanto à protecção e bem-estar animal, nem sempre é fácil a sua aplicação. A própria UE terá reconhecido que o nível de aplicação da legislação tem sido insuficiente e que os Estados membros têm falhado na aplicação e execução correcta das leis da UE.

Importa, por isso, lembrar que o bem-estar dos animais depende de três componentes: bem-estar físico, bem-estar mental e terem a possibilidade de viver a sua vida natural. 

Uma das organizações que têm contribuído para a investigação, exposição e debate sobre o bem-estar-animal é o Aquatic Life Institute (Instituto da Vida Aquática), que tem estabelecido e divulgado um conjunto de recomendações para melhorar as práticas na aquicultura

Não obstante, tal como algumas ONG (Organização não governamental) têm vindo a mostrar, entre as quais a Compassing in world farming (CIWF – Compaixão na agricultura mundial), nas pisciculturas intensivas, as referidas componentes para o bem-estar animal estão comprometidas pela sobrelotação em condições precárias, pela fome e por métodos de abate desumanos, como a asfixia

fresh sea bream hanged tail rope center

A ‘vida’ dos peixes de Aquicultura

SobrelotaçãoO espaço exíguo a que um grande número de peixes está sujeito a viver em confinamento é, naturalmente, um impedimento ao seu bem-estar. Por outro lado, os peixes que vivem nestas condições estão mais susceptíveis a doenças e sofrem mais stress, agressão e lesões físicas, como por exemplo danos nas barbatanas. Além da falta de espaço, a sobrelotação também pode provocar uma má qualidade da água, pelo que os peixes têm menos oxigénio para respirar.

Comportamento naturalAs exigências comportamentais da maior parte das espécies de peixes ‘produzidas’ em aquicultura são mal conhecidas. Porém, é muito pouco provável que as condições da criação intensiva satisfaçam mesmo as necessidades básicas dos peixes, desde logo a sua deslocação natural. Os salmões, por exemplo, são peixes migratórios; se estivessem no seu ambiente natural, percorreriam naturalmente grandes distâncias no mar. Em vez disso, nadam em círculos à volta da jaula, esfregando-se na rede e uns nos outros.

FomeO alimento é frequentemente retirado aos peixes de cultura antes de um processo stressante, como o transporte ou a classificação (separação em grupos de tamanho semelhante) e o abate. Normalmente, não são necessários mais de dois ou três dias para esvaziar o intestino, mas alguns peixes podem passar fome durante duas semanas ou mais.

Morte por asfixiaOs peixes de viveiro são abatidos por uma série de métodos. Alguns métodos causam imenso sofrimento, como a gaseificação com dióxido de carbono ou o corte das guelras sem atordoamento. Alguns peixes são simplesmente deixados a sufocar no ar ou no gelo, ou podem ser transformados ainda vivos. Existem métodos menos desumanos, como o atordoamento elétrico ou um golpe na cabeça. 

closeup shot carp fish underwater

Os peixes também sentem?

Conforme referido anteriormente, são crescentes os indícios quanto à senciência dos peixes. Como afirma Peter Singer, os sistemas nervosos dos peixes são suficientemente semelhantes aos das aves e dos mamíferos para nos sugerir que sentem.

Quando os peixes sentem algo que poderia causar dor física a outros animais, comportam-se como se sentissem dor, sendo que a mudança de comportamento, pela eventual dor sentida, pode durar várias horas. Os peixes aprendem a evitar experiências desagradáveis, como choques eléctricos. E os analgésicos reduzem os sintomas de dor que, de outra forma, apresentariam.

Uma das primeiras obras a destacar-se nesta matéria, foi o livro “Do Fish Feel Pain?” (Os peixes sentem dor?), de Victoria Braithwaite. Esta cientista britânica e Professora de Comportamento e Cognição Animal na Universidade da Pensilvânia foi a primeira pessoa a demonstrar que os peixes sentem dor. O seu trabalho de investigação sobre o bem-estar animal foi de tal ordem impactante que deu azo a alterações nas directrizes para o tratamento de peixes em laboratórios e pescas no Reino Unido, Europa e Canadá.

Além do trabalho de Victoria Brathwaite, os estudos que têm sido levados a cabo ajudam-nos a perceber que: 

  • os peixes sentem dor e tentam evitá-la
  • os peixes têm boa memória
  • os peixes experienciam emoções
  • os peixes têm capacidade para resolver problemas
  • os peixes aprendem com os seus pares
  • os peixes cooperam uns com os outros.

Num artigo recentemente publicado pela AVP, formulava-se a questão sobre se os peixes serão menos inteligentes que os humanos, do qual destacamos algumas curiosidades:

  • Os peixes comunicam entre si através de sons de baixa frequência e até de gestos;
  • Alguns mantêm “jardins” bem cuidados, cultivando algas e retirando os tipos de vegetação que não lhes agrada;
  • Tal como os pássaros, muitos peixes constroem ninhos para criar as suas crias. Outros recolhem rochas para construir esconderijos.

Mais uma vez, reforçamos a ideia de que o olhar humano tende a ser antropocêntrico. Todavia, os quadros de referências são incomparáveis, por isso, ao abordarmos as formas de inteligência, as emoções e comportamentos sociais e culturais dos outros animais, devemos ter em consideração que são os humanos que decidem o que é ou não é inteligência.

De qualquer forma, aqui ficam outros exemplos que contribuem e reforçam a necessidade de um debate profundo sobre este assunto:

O baiacu japonês macho cria um espantoso ninho geométrico de dois metros de largura na areia. Trabalhando diligentemente durante cerca de uma semana, este peixe agita a areia com as barbatanas e torna-a perfeitamente simétrica. Faz isto para atrair e impressionar as fêmeas.

Os peixes-bolota são capazes de utilizar ferramentas – esmagam conchas de amêijoas com pedras para chegar à carne que se encontra no seu interior. Seleccionam cuidadosamente as pedras com o tamanho e a forma adequados e, com frequência, transportam-nas para outros locais para as utilizarem na procura de alimentos.

A caça cooperativa entre animais de espécies diferentes é rara e impressionante. As garoupas, por exemplo, vão a grutas onde sabem que vive a sua amiga moreia e gesticulam para a convidar a sair para caçar. As enguias expulsam os peixes de locais apertados do recife e depois a garoupa apanha-os em águas abertas e partilham o alimento. Recentemente, os investigadores descobriram que as garoupas também adoptam o mesmo comportamento com os polvos.

grey mullet water

Pequenos gestos que podem fazer a diferença

Os exemplos anteriores são ilustrativos de como os peixes, juntamente com outros animais, também sentem e, pior que isso, como podem sofrer com o tratamento que os humanos lhes infligem. Sem dúvida que estamos longe de corresponder às suas necessidades. Todavia, podemos divulgar e promover o debate, trazendo à luz o que se passa debaixo de água.

Assim, convidamos-te a assinar e a divulgar petições que exijam a proteção dos peixes, como esta: Demand Stronger Protections For Fish | Animal Equality UK. Se souberes de outras iniciativas, contacta a AVP, para que a possamos divulgar, também.

Entretanto, deixamos-te ainda, como sugestão, a visualização do documentário “A sabedoria do polvo”.

Artigo da autoria de Ana Luísa Pereira.

Referências

Meio século de libertação animal não é suficiente” – Texto publicado na Revista do Jornal Expresso, de 26 de Maio de 2023

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