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Os Custos Artificiais da Carne

A carne é artificialmente barata para o consumidor. Porém, existem muitos custos na produção industrial da carne que serão, mais cedo que mais tarde, pagos por todas as pessoas. Quanto aos outros animais, desde há muito que pagam um preço elevado, ora com a própria vida, ora com o sofrimento da perda dos seus entes ou do seu habitat.
Os Custos Artificiais da Carne

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Aumento do consumo de carne

O consumo da carne tem vindo a mudar ao longo do tempo, em especial a partir da Revolução Industrial e, em particular, nos países em desenvolvimento. Se retrocedermos no tempo, facilmente se percebe que a alimentação se transformou em função do desenvolvimento técnico, industrial e, mais recentemente, tecnológico. 

Se até à Idade Média a alimentação era principalmente à base de vegetais, durante a Revolução Industrial o consumo de carne aumentou exponencialmente e, ao longo do século XX, esse consumo não apenas se amplificou em termos quantitativos, mas em todo o planeta, conforme podes ver aqui. 

Em Portugal, por exemplo, a cultura alimentar até à primeira metade do século XX foi eminentemente vegetariana – por obrigação – como era, de resto, a grande cultura alimentar do sul da Europa.

É a partir da década de 1960 que a mudança de comportamento dos portugueses, no que toca aos produtos de origem animal, se torna evidente. A título de exemplo, a disponibilidade de leite sofreu um aumento de 181%, ao mesmo tempo que a disponibilidade de carne bovina para consumo aumentou 151%. O mesmo aconteceu com a carne de porco, cujo aumento foi de 60%, e as aves de criação, de 1379% (ou seja, aumentaram de 3,69 g para 50,9 g por habitante por dia (dados disponibilizados no estudo de Pedro Graça, sobre a alimentação portuguesa).

O aumento foi sendo consistente ao longo das décadas seguintes. De acordo com o estudo de Pedro Graça, em 2015-2016, 6,3% da população residente em Portugal apresentava um consumo diário de mais de 50 g de carnes processadas, e 22,5% de indivíduos a consumirem mais de 100 g de carne vermelha – sendo que o consumo diário acima de 50 g de carnes processadas e de 100 g de carne vermelha está associado ao aumento do risco de certos tipos de cancro.

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Segundo os dados do estudo já mencionado, a tendência alimentar dos portugueses é direcionada para um consumo de carne e peixe, e o consumidor médio ingere à volta de 117 g de carne ou 42 g de pescado por dia. Por outro lado, embora se divulgue o enorme valor nutricional da proteína de origem vegetal, o consumo médio de leguminosas (feijão, grão, lentilhas…) é de apenas 18 g por dia.

Os valores em Portugal estão em consonância com o panorama mundial. No Ocidente, as pessoas que comem carne todos os dias são a maioria, enquanto na China, uma cultura menos carnívora, essa é já também uma aspiração. Assim sendo, não é de estranhar que a produção mundial de carne tenha subido de 78 milhões de toneladas por ano, em 1963, para 308 milhões de toneladas, em 2014.

Os apoios da União Europeia e do Estado

Aquela produção massiva resulta de uma produção agropecuária intensiva que é vivamente auxiliada pelos apoios estatais e, no caso da Europa, pelos pactos da Política Agrícola Comum (PAC).

Com efeito, os subsídios agrícolas são uma prática generalizada que, desde há décadas, vem encobrindo os verdadeiros custos da produção pecuária e, desse modo, reduzindo o preço final para o consumidor. 

Em Portugal, por exemplo, a reforma da PAC, em 2013, abrange todos os agricultores e produtores que tenham pelo menos 0,5 ha de terra e pretendam aceder a apoios estatais. Basta entrar no site da Confederação de Agricultores de Portugal (CAP) para logo se obter informação atualizada no que concerne aos apoios disponíveis e à respetiva candidatura.

Tendo em conta a quantidade de apoios, facilmente se percebe que o valor final da carne seja tão baixo. Aqui ficam alguns exemplos dos tipos de apoio existentes:

  1. Para os produtores de carne – ovinos e caprinos, a ajuda é paga ao produtor, num montante de 40 € por fêmea elegível.
  2. Para a manutenção de raças autóctones, com uma longa lista de raças, permite mais uma série de possibilidades de financiamento.
  3. Os valores unitários das ajudas e envelopes financeiros são assim os seguintes em termos de produção de leite:
  • Vaca em aleitamento – 129 €/animal;
  • Vaca leiteira – 99 €/animal;
  • Ovinos e caprinos – 23 €/animal.

Para além dos apoios referidos, os produtores podem candidatar-se a outros, como é o caso da manutenção dos Prados Permanentes – significando mais um apoio para o alimento do gado.

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Apoios excepcionais durante a pandemia

A título excepcional, durante a época da pandemia – leia-se menos aquisição de produtos de origem animal por parte dos sectores da hotelaria e da restauração –, os apoios e ajudas não se fizeram esperar.

Por conseguinte, ainda que o sector da cultura continue à espera, o sector da agropecuária já tem todos os trâmites em andamento. Conforme se pode ler no site do IFAP, a dotação orçamental global de 12,2 milhões de euros, será distribuída do seguinte modo:

  1. Sector das aves e dos ovos: 7,1 milhões de euros;
  2. Sector da carne de suíno: 2,9 milhões de euros;
  3. Sector do leite de pequenos ruminantes: 2,2 milhões de euros.

Informação ratificada na página da CAP, que noticia antecipadamente os “envelopes financeiros” para o sector dos animais e o aumento nas ajudas

Repare-se no termo ajudas: se o sector agropecuário consegue sobreviver à prática de valores tão baixos, tal decorre das ajudas estatais. Ou seja, a criação de animais é sustentada pelo erário público

O que significa que apesar do preço final ser reduzido, este é pago pelos impostos de todos – quer daqueles que mantêm uma alimentação com carne, quer daqueles que há muito renunciaram aos produtos de origem animal.

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O projeto Abrir de Asas pretende mostrar que os animais explorados pela indústria de frango e ovos têm uma vida curta e verdadeiramente miserável.

E se se calculassem todos os custos de produção de carne?

Para além dos subsídios que se concedem em inúmeros países, outros custos ficam por contabilizar no que à produção da carne concerne. Exemplo disso, são as conclusões a que se chegou num estudo sobre os custos da produção de carne na Alemanha – Calculation of external climate costs for food highlights inadequate pricing of animal products. De acordo com os autores do estudo, o preço que está indicado na embalagem final não contempla, de todo, o gasto e desgaste dos recursos naturais, tão-pouco o impacto dos gases com efeito estufa. Se assim fosse, o preço da carne seria 146% superior ao que se paga

E se a carne for de origem biológica, acrescentar-se-ia, mais 70%. Ainda de acordo com os mesmos autores, os produtos vegetais e frutas biológicas seriam apenas 6% mais caros do que os preços actualmente praticados. 

A equipa de investigação analisou quatro indicadores: mudanças no uso da terra, emissões de gases de efeito estufa, emissão de nitrogénio reativo e necessidade de energia na produção. O uso de pesticidas e antibióticos não foram considerados nesse estudo.

Os autores conseguiram quantificar e monitorizar as emissões de gases relativos à produção convencional e biológica de vários alimentos de origem animal e à base de plantas. Os resultados obtidos neste estudo, efectuado na Alemanha, demonstram que os custos dos produtos de origem animal são muito mais elevados, devido às necessidades de alimento dos respectivos animais e às cadeias de transformação produção desses mesmos produtos, que são muito mais complicadas e longas. 

Assim, se o preço final contabilizasse o preço real, o preço da carne de cultivo convencional subiria 146%, enquanto a de cultivo biológico seria o dobro. Já o preço do leite de produção não biológica aumentaria 122%, enquanto o de origem biológica subiria 69%.

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Os custos do baixo custo da carne

Os dados obtidos para a produção de carne na Alemanha não são, certamente, exclusivos para aquele país. Pelo contrário, existem outros custos camuflados/encobertos neste baixo preço artificial da carne. Custos esses que são cada vez mais evidentes em pelo menos quatro frentes: ambiente, saúde, sociais e, obviamente, para os outros animais.  

Custos para o ambiente

De acordo com a Food and Agriculture Organization (FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), o  sector pecuário é uma das principais fontes de gases de efeito estufa, gerando 14,5 % das emissões totais de gases de efeito estufa (mais do que o sector de transporte, que contribui com 13% das emissões). 

As grandes indústrias pecuárias são descritas como sendo aquelas que mais impacto têm na devastação do meio ambiente. E por vários motivos: desde logo pela acumulação de estrume, cuja poluição é muito elevada. Por outro lado, o gado emite metano – 30 vezes mais potente que o dióxido de carbono, enquanto gás com efeito de estufa. 

Em termos globais, pelo menos um terço da terra cultivada no mundo inteiro é destinada a produzir ração para animais. Daqui emergem vários problemas: por um lado, a desflorestação em massa, como aquela que acontece na Amazónia; por outro, a questão do transporte dessa mesma ração para os países produtores de gado. 

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A produção e consumo de 1 kg de bife de vaca (produção intensiva em Portugal), contribui com uma emissão de cerca de 80 kg de CO2eq (equivalentes de CO2), o que é equiparável a uma viagem de 230 km de carro. A produção de 1 kg da generalidade do feijão gera apenas 1 kg de CO2eq. Isto representa uma emissão de gases com efeito de estufa de cerca de 80 vezes inferior em comparação com a produção de 1 kg de bife de vaca. Conforme se lê no relatório completo sobre a sustentabilidade do sistema alimentar, do projeto Proteína Verde.

Além disso, este cultivo intensivo tem um impacto brutal, quer no aumento de erosão dos solos, quer no que diz respeito à respetiva contaminação – com as evidentes repercussões na qualidade da água. Existem diversos casos conhecidos desta execrável realidade, em Portugal, sendo Leiria um exemplo egrégio deste tipo de poluição.

Se a contaminação da água provocada pelo uso dos químicos já dá que pensar, acrescente-se a quantidade de água necessária para alimentar os animais – cerca de 23% da água doce disponível no planeta é usada na pecuária.

Com estes e outros números tão amplamente discutidos, torna-se evidente que as consequências em termos ambientais são mais do que devastadoras. Se para a população atual do hemisfério sul, em particular no continente africano, a escassez de água é óbvia, se não for pelos animais ou pela saúde individual, podemos colocar a seguinte questão: que mundo queremos para os nossos filhos?

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Custos para a saúde

Conforme se referiu acima, em Portugal, o aumento do consumo de carne está equiparado ao de outros países do Ocidente, com os respetivos resultados ao nível da saúde. Existem até dados, em relação à população portuguesa, que demonstram que as consequências para a saúde se estendem à redução do nível médio de vida.

A população portuguesa, que outrora fazia sobretudo uma alimentação à base de hortícolas, passou a ter uma alimentação com uma forte componente de produtos de origem animal e processados. Por conseguinte, com um aumento do risco de determinados tipos de cancros, como por exemplo o cancro retal e cólon, sendo estes o que têm mais incidência na população portuguesa. É a terceira causa de morte por cancro no mundo

Acrescente-se que este consumo de carne, associado à gordura tem, inevitavelmente, como efeito, o aumento de doenças cardíacas, diabetes, níveis elevados de colesterol e aumento de incidência daqueles e de outros cancros. 

Ademais, a ‘saúde’ dos animais de interesse pecuária é fundamental para a ‘qualidade’ e quantidade de carne em que resultarão. Como tal, não é de todo despiciendo o efeito dos antibióticos e outros produtos químicos que lhes são administrados na saúde do consumidor dessa mesma carne. 

Tendo em conta que 70% dos antibióticos globalmente produzidos são para o gado, é de questionar qual a sua repercussão ao nível dos solos e, por conseguinte, em todos os seres vivos, humanos incluídos, que não ingerem essa carne. 

Ainda em matéria de custos para saúde, podemos sempre questionar a quem é passada a respetiva factura. Porque, não nos iludamos, os impostos são pagos por todos!

Poderá colocar-se novamente em perspetiva a reflexão relativamente à redução ou mesmo supressão do consumo de carne. Se não pelo futuro das gerações vindouras, se não pelo ambiente, porque não pela própria saúde?

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Custos para os animais

As evidências quanto à senciência dos outros animais são cada vez maiores e mais abundantes. E só não são tomadas em conta pela generalidade dos seres humanos, por negação consciente ou (“culturalmente”) inconsciente, e pelo poder do discurso e das narrativas (ainda) dominantes, acerca da pretensa necessidade dos produtos de origem animal para a “saúde” dos seres humanos. 

Os números apresentados acima são exemplos parcos sobre as consequências para a saúde dos humanos. Todavia, os custos da narrativa ocidental (que se espalhou para o resto do planeta) são enormes e incomensuráveis para os outros animais. As condições a que estes são sujeitos no cativeiro, o modo como são transportados, o modo como são mortos e transformados, tudo isso está mais do que documentado, quer em documentários, quer em reportagens, quer no âmbito científico… quer nos manuais de abate

São os “animais de interesse pecuário” que mais sofrem com tudo o que os humanos praticam como formas ‘culturais’ de alimentação. A sua redução a comodidade mercantil tornou os humanos insensíveis e cegos ao sofrimento de outros seres vivos. 

O manual de abate da Confederação de Agricultores de Portugal (CAP) é um excelente exemplo disto, com a sua descrição crua e dura dos processos a que os animais são sujeitos na sua curta vida. Termos como occisados, abatidos, refugados, inseminados, eletrocutados, castrados, descornados, cauterizados, amarrados, amordaçados, decapitados, sangrados, revelam ‘apenas’ um pouco do sofrimento daqueles animais que serão transformados em carne. 

Portanto, podemos continuar a enfiar a cabeça na areia, qual avestruz, ou podemos questionar-nos, como humanos que somos, em termos éticos, sobre o que queremos ter no prato

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Custos sociais

As repercussões dos custos anteriormente descritos têm naturalmente custos sob o ponto de vista social e alguns já foram sendo enunciados. As desigualdades entre os países do hemisfério norte e do hemisfério sul, muitas vezes entre aqueles que produzem e aqueles que consomem, são visíveis no nível de desnutrição dos primeiros e nas doenças do consumo excessivo dos segundos. A malnutrição no Sul e a obesidade no Norte é paradoxal.

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A injustiça social também é visível na exploração dos humanos sobre outros humanos. Por um lado, pelas condições laborais que muitas pessoas são obrigadas a aceitar, pela competição desleal. Por outro, a desflorestação e a transformação dos solos, para a agricultura intensiva, não apenas retira o modo de sustento das comunidades, como lhes destrói o seu habitat, como é o caso da floresta amazónica, cuja destruição não para de crescer.

A transformação dos hábitos alimentares é possível e tem consequências positivas a todos os níveis, desde logo por permitir uma melhor distribuição dos recursos naturais. 

Uma das questões que nos assola é esta: que catástrofe será necessária para que mudemos? Porque se continuarmos a destruir o planeta, a saúde humana, os outros animais e humanos, será inevitável o aparecimento de pandemias, escassez de água, desertificação dos solos, etc.

Como fazer a pecuária pagar os verdadeiro custos da carne?

Começam a notar-se práticas neste sentido: já há países a desenvolver medidas que visam responsabilizar este sector, nomeadamente a Dinamarca, a Suécia e a Alemanha. Um pouco na linha do que se implementou, há décadas, às tabaqueiras. Para além deste tipo de medidas, deixamos algumas sugestões de reflexão para esta mudança que se faz necessária e urgente:

  • Incluir os custos ecológicos – inserir o valor da pegada ecológica, como no exemplo da Suécia já aqui publicado;
  • Penalizar situações claras de abuso e maus-tratos, aumentando e apertando a fiscalização; colocando em prática a lei de transporte e do ‘bem-estar’ animal, fazendo o efectivo controlo sobre as condições em que os animais vivem;
  • Retirar os subsídios para a pecuária e canalizá-los para uma agricultura sustentável, justa e responsável;
  • Informar e educar sobre os efeitos do excesso de consumo e sobre o modo como é produzida a carne.
  • Existem outras medidas que promovem, pela positiva, um maior incentivo à produção e ao consumo de proteínas de base vegetal, em detrimento das que têm origem animal. Podes explorar outras medidas e subscrevê-las, contribuindo para que sejam implementadas pelos decisores políticos em Portugal, na Petição Pública do projeto Proteína Verde, uma iniciativa que atua em prol da sustentabilidade do sistema alimentar e que luta para que este passe a estar assente na proteína vegetal.

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