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Na Linha da Morte: a Vida Dos Animais de Produção em Portugal

Os animais de produção são bem tratados? O dilema está em ignorar o processo inerente à produção dos animais que, segundo o manual de “bem-estar” animal no abate, da Confederação de Agricultores de Portugal (CAP), serão occisados, abatidos, refugados, inseminados, eletrocutados, castrados, descornados, cauterizados, amarrados, amordaçados, decapitados, sangrados. E estes são apenas alguns exemplos de práticas comuns durante o abate.
Os animais de produção são bem tratados?

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[NOTA IMPORTANTE]: Este artigo contém imagens que podem ferir a susceptibilidade de leitores mais sensíveis.

Os animais de produção são bem tratados?

Perante a questão anterior, o dilema está em ignorar o processo inerente à produção dos animais que, segundo o manual de “bem-estar” animal no abate, da Confederação de Agricultores de Portugal (CAP), serão occisados, abatidos, refugados, inseminados, eletrocutados, castrados, descornados, cauterizados, amarrados, amordaçados, decapitados, sangrados. E estes são apenas alguns exemplos de práticas comuns durante o abate, conforme ilustradas pelas imagens seguintes de um matadouro dos arredores de Alcobaça.

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Fotografias de Janine Oliveira

Bem-estar animal na indústria pecuária: existe?
O R-E-F-U-G-O

Antes de chegarem ao matadouro, outras questões se colocam no que concerne ao transporte de animais, cujas condições há muito que são discutidas, mas nem por isso resolvidas.  O modo de transporte é uma das causas para o refugo de animais, isto é, a sua rejeição.

transporte animais vivos

Notícia do ionline.

De acordo com George Stilwell, médico-veterinário e Professor da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa, é muito importante analisar o Refugo, ou seja, os animais que são postos de parte por não corresponderem aos padrões de qualidade1

Ao analisar-se o refugo, seja voluntário ou involuntário (para o produtor), com base em todos os registos que podem e devem ser feitos, será possível determinar as razões que fazem com que esse refugo seja substituído por outras vacas leiteiras (este termo será discutido mais à frente). 

Isso significa que é necessário saber se o refugo se deve a mastites (inflamação da mama), problemas reprodutivos, problemas do úbere (glândula mamária), patologia podal, entre outras causas associadas ao período pós-parto.

Para este, e outros autores e veterinários da indústria pecuária, importa realmente compreender o que se passa, pois só desse modo se poderá intervir e, assim, contribuir para a “saúde” das cabeças de gado e, por consequência, para a rentabilização do sector. 

Isso mesmo é ratificado pela CAP, em cujo Manual de “bem-estar” animal se reconhece a exigência do consumidor, e onde se afirma que “os consumidores encaram os elevados padrões em matéria de Bem-Estar animal, como indicadores de segurança alimentar e de boa qualidade dos produtos2”.

Ademais, no Manual de “Bem-estar” no Abate, a CAP sossega os produtores – preocupados com as inúmeras normas na persecução do “bem-estar” animal no abate –, garantindo que  “não existe conflito de interesses sobre esta matéria, visto que os objetivos e interesses no bem-estar são geralmente os que originam maiores níveis de rentabilidade e qualidade para a indústria da carne”. 

Sobre o “Bem-Estar” animal

Os dois manuais aqui citados contêm inúmeros termos que nos fazem questionar o conceito de “bem-estar” animal. Para ilustrar a nossa dúvida, apresentamos alguns excertos dos manuais mencionados, relativos às descargas eléctricas.

Assim, no Manual de “Bem-Estar” animal afirma-se o seguinte:

“O uso de aparelhos de descargas eléctricas deve ser evitado ao máximo. Caso necessário, estes instrumentos apenas podem ser utilizados durante 1 segundo nos músculos dos membros posteriores e apenas se os animais dispuserem de espaço suficiente para avançar”. 

Entretanto, no Manual de “Bem-Estar” no abate, o tempo de descarga eléctrica sobe para 2 segundos. E ainda mais à frente neste mesmo manual:

“No caso da Eletronarcose, … aplicar-se de forma a que corrente passe de 1 a 3 segundos …”.

De 1 vai-se aos 3 segundos.

O manual de abate é, aliás, uma descrição minuciosa de como “bem” abater os animais. Deixamos-te mais um exemplo:

Tanque de imersão (para aves) – “… devem ser tomadas medidas adequadas a fim de assegurar uma passagem satisfatória da corrente eléctrica, para garantir o bom contacto eléctrico, tais como molhando as patas das aves e os ganchos de suspensão”.

Nos arredores…

Arredores – uma espécie de nenhures. Um ‘não-lugar’ nos termos de Marc Augé3. Os matadouros nos arredores podem entender-se como não-lugares, lugares anónimos, onde pessoas anónimas se encontram e se evita a criação de ligações afetivas e de sentimentos como a empatia. 

São edificados nos arredores, os matadouros, para evitar o acesso fácil e, por conseguinte, que seja do conhecimento geral o que lá acontece. Aproveitamos para lembrar que o sofrimento animal nestes locais também atinge os animais humanos.

Com efeito, a banalização e rotinização da violência tende a resultar em indiferença. Sendo certo que a distância física e moral de quem aí trabalha gera outros problemas, também aos animais humanos.Não é à toa que surgem trabalhos extraordinários e corajosos, como os de Cristiano Luís e de Janine Oliveira (autores das fotografias aqui incluídas), que tentam reclamar a atenção para uma prática quotidiana, que se torna numa rotina e que, por isso, mecanizada e automatizada, onde o animal é ‘des-locado’ para uma linha de montagem. Sim. Linha de montagem! Num não-lugar…

Os matadouros estão, por regra, situados fora das localidades – nos seus arredores: uma indicação normativa. Não apenas pelo espaço necessário, mas sobretudo pelos processos que aí se desenrolam. Só desse modo se perpetra uma prática que não é assim tão antiga como nos querem fazer acreditar.

Da Omissão…

Esta é uma das formas de omissão. Há um provérbio português que diz o seguinte: Longe da vista, longe do coração. Aplica-se na perfeição e não é por acaso. 

Existe uma ordem coerciva que é omissa, que é bem descrita por Rui Pedro da Fonseca, através d’ A vaca que não ri4. Os processos de exploração animal nas instalações da agropecuária que implicam, por condição, mecanismos de coerção, violência e morte, “são tornados omissos/invisíveis face à população consumidora. Omissos fisicamente porque:

  1. não presenciamos os processos de maneio que têm lugar nas fábricas de produção intensiva;
  2. as representações acerca dos mesmos (na nossa cultura dominante) são inexistentes”.

Através desta omissão – consubstanciada pelo aumento brutal e exponencial do consumo de carne a partir do século XIX –, os animais foram transformados em referenciais ausentes. “Ou seja: não pensamos neles como indivíduos, ou no seu percurso e nas condições de vida, o que resulta na neutralização de qualquer sentimento de empatia que se possa desenvolver relativamente a eles”.

Decerto que já te deste conta da falta de divulgação sobre o que sucede no interior de um matadouro. E também não será estranho que já tenhas escutado muitas vezes algo deste género: “Nem quero ver, não seria capaz de comer sem culpa”. 

A ausência será eventualmente combatida – pela imagem que ‘grita’.

animais na pecuaria portugal

Fotografia de Janine Oliveira

Por pior que estas imagens te façam sentir, não há como escapar desta realidade. Isto aconteceu ontem. Ocorre no momento em que estás a ler este texto. E amanhã voltará a realizar-se. 

Números que despersonalizam e objetificam

Para teres uma ideia do total de abates em Portugal, enunciamos mais uma vez estes números de 20185

“A cada dia: 945 809 animais; 

cada hora: 123 154 animais;

cada minuto: 2053 animais;

cada segundo: 35 animais.

Nota: Estes dados são baseados em 251 dias por ano e 8 horas por dia, a estimativa de dias e horas em que os matadouros estão em serviço”.

Em 2020 tivemos 253 úteis. Faz as contas! 

Da Omissão… à Ausência

O processo de omissão que conduz à ausência é algo que se ‘fabrica’ desde há muito, através da acção de diversos agentes de socialização. Não apenas através dos meios de comunicação social, como a publicidade e muitos programas na televisão portuguesa, mas também da família e da escola. 

Espaços de socialização, educação e transmissão de cultura, através dos quais se constroem e cristalizam, desde a primeira infância, comportamentos e hábitos associados ao consumo de animais e de produtos derivados, sem que haja qualquer questionamento. 

Adicionalmente, quando se têm em conta campanhas de leite escolar, percebe-se que para além da apologia do produto de origem animal, se transmite e se reitera a ideia de que o nosso bem-estar e saúde dependem do consumo desses mesmos produtos.

Como refere Rui Pedro da Fonseca6: “A incorporação de crenças e de práticas alimentares apologistas de consumo de alguns animais, e de alguns produtos que lhes advêm, tem precisamente início na infância”.

Desde logo, através das histórias que se contam às crianças e sobre o modo como os animais são representados nessas histórias, nas quais se omitem todos os processos de exploração e produção animal.

Entendemos, porém, que a questão se deve colocar ao contrário:

– Como é possível que se continue a omitir, esconder, calar, ignorar as vozes e sentimentos dos que sofrem, para que a nossa mesa seja farta (e em excesso) em comida de origem animal?

Parece inevitável: o sofrimento, a dor, as sensações provocadas pela occisão, pela eletrocussão, pela decapitação, pelas amarras, pelo espaço contíguo em que cada animal “vive” devem manter-se omissos

Tudo isto permanece ausente, ou mesmo escondido da generalidade dos consumidores. Caso contrário, como poderíamos nós conviver com o sofrimento dos quase um milhão de animais que são abatidos por dia, só em Portugal?

O poder da linguagem… humana

Esta ausência é possível pela linguagem humana. E de dois modos.

Em primeiro lugar, somos nós, os humanos que ditamos que a nossa linguagem é a única válida. Como tal, não nos preocupamos em compreender o que nos comunicam os outros animais. 

É por este motivo que estes não são escutados, tão-pouco representados. Nós é que decidimos. E também deliberamos o que se consideram ser as suas necessidades, liberdades, e condições de “bem-estar”.

Repara que nos focamos nos animais que não são de companhia. E é aqui que se joga o poder da linguagem. Os animais de companhia em Portugal – diferentes dos da China, por exemplo – são tratados de modo distinto face aos animais classificados como de interesse pecuário.

Para os cães, cachorros, gatos, só para mencionar os mais comuns, já existem leis que os protegem dos maus-tratos e lhes permitem, por exemplo, a entrada em estabelecimentos comerciais.

Por outro lado, foram criados novos mecanismos de protecção ao “bem-estar” animal. Em Portugal isso é relevante, na medida em que contribui para obter mais financiamento por parte dos organismos europeus. 

O que nos importa agora destacar é o poder da linguagem para determinar e perpetrar o interesse dos animais para a pecuária. O modo como os alimentos de origem animal são comercializados decorre de uma separação entre o sujeito animal e o produto de consumo.

 O que se adquire, se confecciona e se consome são, na verdade, partes e fragmentos de um ser que foi occisado, eletrocutado, descornado e decapitado.

Assim, classificaram-se os bovinos de leite, vulgo, vacas de leiteiras ou as galinhas de poedeiras, os suínos e leitões, por exemplo, que se transformam: em diversos tipos de leite, em bife de porco ou de novilho, numa coxa de frango, em moelas, em iscas de fígado, etc.

O que se compra num supermercado, e cada vez menos num talho, é uma embalagem de coxinhas ou de bifinhos de peru.

O que sucede é um processo de desindividualização, de ‘objetificação’.

O que vemos num supermercado não é um animal morto, sofrido, violentado, decapitado, descornado, depenado, sangrado. O que vemos é uma embalagem asséptica com uma imagem de uma galinha feliz a picar o solo. Antes de lá chegar, porém, como foi tratada a galinha poedeira?

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Fotografias de Janine Oliveira

É por este motivo que é preciso mostrar!

Estas e outras reportagens e trabalhos fotográficos são muito importantes, na medida em que combatem “a mitificação e a ausência de conhecimento e despersonalização”. Para usar os termos de uma “vaca que não ri” e que precisa de ser representada por quem tem esse poder.

Infelizmente, o optimismo não chega para mudar a realidade. Sabemos que isso demorará muito tempo. A não ser que a preservação da espécie humana a isso o obrigue, estamos longe de considerar os interesses dos animais não humanos da mesma forma que consideramos os interesses humanos, nomeadamente, o interesse em não sofrer e viver em liberdade.

Enquanto isso não acontece, além de poderes continuar a fazer a tua parte na divulgação deste e de outros temas, podes apoiar e salvar animais do matadouro. Vê aqui como. 

Outra coisa que parece ficar clara é que a mudança de comportamentos terá de passar, inevitavelmente, pela visualização do que se passa e pela percepção clara do sofrimento a que os animais não humanos são sujeitos desde que nascem (ou que são ‘produzidos’) até que morrem (ou são abatidos).

Além dos trabalhos que aqui se mencionaram, começam a surgir mais imagens, mais registos, como é o caso da obra recente: HIDDEN: Animals in the Anthropocene.

Quem sabe se mais pessoas se sensibilizam com os sentimentos dos animais não humanos, com a sua dor ao lhes serem retiradas as crias; com o seu sofrimento, quando lhes cortam os bicos; com o seu pânico quando são submersos vivos em água quente, para que se lhes retirem as penas para as nossas almofadas… só para deixar mais alguns exemplos do que os humanos são capazes de fazer pelo prazer de degustar mais uma bifana…

Sugestões para Des-Omitir

Aqui te deixamos algumas sugestões de documentários, já mencionadas noutro artigo sobre a dimensão ética do que colocamos no prato:

“A Razão Secreta pela qual Comemos Carne”
“Este pequeno vídeo da Dra Melanie Joy fala-nos da “razão secreta pela qual comemos carne” e do conceito de Carnismo, crença “invisível” que nos foi incutida a quase todos desde a nascença sem sequer nos termos apercebido disso.

Podes ver legendado em Português aqui.

Earthlings

Para aqueles que buscam a verdade sobre as indústrias que apoiam e desejam compreender toda a extensão da brutalidade da Humanidade em relação aos animais não humanos, o Earthlings é de visualização obrigatória.

Podes ver legendado em Português aqui”.

Notas

1Refugo: termo para a saída das vacas da exploração, quer estejam elas mortas na altura da saída da exploração, quer saiam vivas para o matadouro ou para outras explorações, independentemente do motivo – ver aqui https://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/5814/1/Análise dos padrões de refugo em explorações leiteiras do sul de Portugal.pdf, por exemplo. Earthlings

2Na página 6 do Manual do Bem-estar animal. Confederação de Agricultores de Portugal.

3Marc Augé (1996): Los «nos lugares». Espacios del anonimato. Una antropología de la sobremodernidad. Barcelona: Editorial Gedisa.

4Rui Pedro da Fonseca (2018): A Vaca que não ri. Animais, ‘carne’ e leite bovino na cultura dominante. Lisboa: Livros Horizonte.

5“De acordo com dados da DGAV (Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária), no ano de 2018, o número de total de indivíduos (mamíferos e aves) mortos em Portugal foi de quase 257 milhões, no total, cerca de 25 vezes a população do nosso país (10 milhões)” – encontra aqui mais informação sobre o número de animais abatidos em Portugal, para consumo.

6Rui Pedro da Fonseca, obra citada: p. 20.

Texto da autoria de Ana Luísa Pereira

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